05.08.2014"O afeto é uma boa razão para tudo" - Entrevista com Valter Hugo Mãe

Valter Hugo Mãe. Quem já teve a satisfação de lê-lo e ouvi-lo de imediato sente que está diante de um escritor dos grandes. Daqueles que proporcionam mais do que uma leitura, uma experiência de estesia, de sensibilidade. A máquina de fazer espanhóis, O filho de mil homens são exemplos de romances que tocaram o público de diversos países de modo intenso e vivo. E o do Brasil de modo muito especial. Mas há muito mais na rica trajetória do escritor que recebeu prêmios do relevo do José Saramago e o Portugal Telecom. O recém-lançado A desumanização veio aumentar ainda mais a admiração do público e o reconhecimento da crítica. Para falar deste e dos seus outros livros, o autor português vem pela primeira vez a Curitiba e faz uma sessão especial e exclusiva do festival Litercultura, no dia 7 de agosto, na Capela Santa Maria. Nesta entrevista ao jornalista Mario Hélio (curador do festival), Valter Hugo Mãe fala do seu novo romance e do caso de amor com o Brasil.

"O inferno não são os outros, pequena Halla. Eles são o paraíso, porque um homem sozinho é apenas um animal. A humanidade começa nos que te rodeiam, e não exatamente em ti". Embora o título do teu livro mais recente seja A Desumanização, o leitmotiv parece estar nas profundas questões do humano, como depreendemos desse trecho do livro, ou o desumano não é mais do que uma das tantas faces do humano?

Tudo o que degenera no homem diz respeito ao homem. Em última análise, ninguém garantiu que ser humano é uma coisa boa, edificante, feita de sentimentos nobres. A nobreza pode não estar ao alcance da humanidade. Seguramente não estará ao alcance de todos. A minha angústia desde sempre passa por essa necessidade de trabalhar o conceito de humano no seu sentido mais positivo. Estou convencido de que ser gente é uma construção. Não é algo adquirido. Não somos gente por nascermos genericamente com as características de um determinado animal. Somos um animal que, se trabalhado, pode ser gente. Importa que ser gente, ser humano, seja sinônimo de coisa boa. Estou sempre interessado no espanto bom, no deslumbre. A vida é para ser maravilhosa.

Encontramos no A Desumanização e também nos outros romances teus não somente o gosto pelo estético (a linguagem e as imagens bem trabalhadas, por exemplo), mas algo como um comovido e comovedor voltar-se para os aspectos éticos da vida humana. A arte pela arte teve alguma vez sentido para ti?

Não exatamente. E acredito que a arte pela arte é, em si, um problema ético. Não é possível abdicar da componente ética. Diria que o objeto artístico criado pela pura eloquência dos materiais, das cores, dos sons, das palavras, é sempre uma problema humano, no sentido de questão que se levanta. Acaba por confinar-se invariavelmente ao mundo do conceito e da ética. Nem que seja uma obra procurando anular toda a representatividade humana, com apenas um monte de entulho colocado no meio de uma sala, isso é em si uma imagem do que o homem propõe e pensa sobre si, porque pensa sobre si o bastante para se achar espectador de entulho. Ser observador de entulho é um problema de fundo, pode não ser leviano.

A Desumanização é dedicado ao teu irmão Casimiro e a Hilmar Örn Hilmarsson. Podes falar um pouco dessa dedicatória? As razões afetivas são um bom impulso para escrever-se um livro?

O afeto é uma boa razão para tudo. Por vezes, a única razão decente. O livro seria todo para o Hilmar, esse músico que muito me marcou e que admiro, mas o livro misturou-se com algumas memórias da minha infância. Aconteceu. Não previ isso. Ele usou algumas imagens que eu tinha de meu irmão que faleceu ainda antes de eu nascer. Não impedi que o livro usasse, percebi que era uma oportunidade de eu próprio pensar sobre o assunto. Resolvi assumir a questão com clareza e dedicar o livro ao Casimiro também. Gostei de poder dedicar-lhe o livro e fazer com que viva um pouquinho através da oportunidade de guardar o seu nome, de voltar a dizer o seu nome.

Sabe-se do amor correspondido entre Valter Hugo Mãe e o Brasil. Pode-se esperar que em algum momento aconteça de outra "declaração de amor esquisita", desta vez ao Brasil e seus orixás esteja no centro, como fizeste à Islândia e seus mitos está em A Desumanização?

Queria muito que isso acontecesse. Só não está a acontecer porque preciso de estar certo sobre o ponto de vista, sobre o ponto de partida, e também não quero apressar algo que é da vida inteira e não tem porque ser acelerado. Seria muito triste que um livro meu passado no Brasil fosse visto como um modo oportunista de agradecer o carinho de tantos leitores brasileiros. Tenho, contudo, uma ideia muito fixa sobre alguns tópicos desse livro futuro. Sou um escritor de lugares pequenos, queria muito estar num lugar pequeno desse imenso país e perceber o mundo inteiro visto dessa condição.

Valter Hugo Mãe não é somente romancista. O que me dizes do Valter poeta, músico, editor?

Uma trapalhada. Minha alma é uma trapalhada. Sou muito intuitivo e faço as coisas por paixão. Tive momentos gratificantes em cada área. Fui editor de Caetano Veloso em Portugal, de Ferreira Gullar e Manoel de Barros. Trabalhei com gente incrível. Embora me tenham esquecido massivamente assim que deixei a editora, guardo com boa memória episódios que me motivaram e fizeram crescer.
Gostaria de ter uma voz linda. Não tenho. Mas gostaria. Fico apaixonado por Nat King Cole e Johnny Hartmann, ouço Nina Simone e a deusa suprema Billie Holiday. Eu adoraria ter um charme qualquer. Esses homens do jazz sempre têm. Eu não tenho charme. Pareço invariavelmente um moço que assa frangos. O dia inteiro, o ano inteiro.

Autor: Mario Helio Gomes

Fonte: Guia Curitiba Apresenta

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